Conheça a história de Dona Cida, fundadora da Sociedade Beneficente Mão Amiga.
As 8:30 da manhã, um veículo sobe a avenida Darcy Vargas no bairro Ipiranga em Juiz de Fora e estaciona próximo ao número 87. Da porta do carona desce Maria Aparecida da Silva, a mulher responsável por dar esperança a mais de cinco mil crianças durante toda uma vida dedicada a outras vidas. Com passos tímidos e vagarosos de quem carrega consigo o peso de tantas histórias, Dona Cida - como é comumente conhecida -, se dirige ao portão da sede da Sociedade Beneficente Mão Amiga para mais um dia dedicado às pessoas. Com as mãos a desenrolar a corrente que guarda o portão azul, o sorriso seguido de um “Vamos entrando?” é um convite sincero e irrecusável.
Ao ingressar, passamos pela varanda que antecede a casa. Ali funciona o bazar, uma das principais fontes de renda da instituição. “É dali que sai o dinheiro para o gás, água e energia.” Seguimos. Nos acomodamos na sala e é lá onde iniciamos nossa conversa. Maria Aparecida da Silva nasceu no município mineiro de Além Paraíba em 1965. Ainda na infância enfrentou a pobreza e muitas das dificuldades que hoje trabalha para não ver mais ninguém passar. Das tragédias particulares de quando criança lista uma em especial: a brincadeira com álcool junto aos irmãos quando tinha cinco anos que resultou em uma parte do lado direito do corpo queimado. “Eu queria ser cozinheira, um dia brincando com fogo isso aconteceu”, relata enquanto desliza os dedos sobre o braço com memórias em forma de cicatrizes.
Do quase desastre, Cida renasceu e tempos depois encontrou meios de seguir seu desejo. Mudou-se da cidade natal para Juiz de Fora para trabalhar. “Aos 12 anos vim para Juiz de Fora trabalhar como cozinheira em um restaurante e como empregada doméstica na casa dos donos. Trabalhava de dia e estudava à noite, até os 14 anos. Após minha irmã se mudar para Juiz de Fora fui morar com ela, mas continuei trabalhando. Uma rotina pesada para uma criança...não era fácil”, avalia hoje do alto de seus 52 anos, aquela que é uma realidade que ainda se faz presente na vida de outros jovens e que Aparecida luta para mudar.
Conheceu o marido aos quatorze anos, teve o primeiro filho com dezessete e o segundo um ano após. Os outros cinco biológicos e sete adotivos viriam depois. Um acidente de trabalho comprometeu a mobilidade do esposo que não podia mais exercer suas funções profissionais e passou a depender da mulher para quase tudo. Além do homem e dos filhos, Dona Cida cuidava da casa onde moravam e dedicava seu tempo também a cuidar dos dois irmãos do marido carentes de uma mãe que havia falecido. A Cida de hoje, em um breve momento refletindo, percebe as suas inclinações a se responsabilizar pelos outros ainda enquanto jovem. “Foi realmente uma vida inteira de cuidados. A gente até fala que se acostuma com as coisas”, analisa.
Por mais que os esforços dedicados a família dessem sinais claros de que o apreço de Dona Cida pelo outro era realmente notável, ainda não se fazia suficiente, pois o outro dividia consigo laços de sangue e de proximidade. Aparecida também queria cuidar do outro que com ela não dividia nada, somente as suas histórias. Histórias essas contadas enquanto unhas eram feitas. Isso porque, quando mudou-se para a Vila Olavo Costa na década de 80, Cida começou a trabalhar como manicure e durante as sessões ouvia das clientes as angústias que as afligiam. Ao mesmo tempo imaginava formas de ajudar aquelas pessoas “Eu costumo falar que eu era meio que uma psicóloga também”, brinca.
Umas das formas que Dona Cida encontrou de ajudar foi por meio da doação de alimentos. “Eu comecei a trabalhar de faxineira na Frangolândia São Rafael. E ali eu pedia pedaços de frango para fazer doações para as pessoas. Começamos com seis famílias recebendo 1kg de cada coisa e chegamos a distribuir no fim - porque as parcerias acabam - uma tonelada e meia de pedaços de frango para a comunidade. Ali já eram mais de 700 famílias assistidas pela instituição em 1995”, revela orgulhosa.
Esse é um dos momentos mais marcantes da Mão Amiga desde sua fundação em 1984. Fatos como esses são guardados com carinho na memória e nos recortes de jornais organizados na pasta de capa preta, guardada com todo cuidado na estante. Ali estão as manchetes do primeiro trote solidário promovido pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) com arrecadações destinadas à Mão Amiga, as inúmeras campanhas de Páscoa, Natal e agasalho promovidas pela instituição, além de alguns lamentáveis ocorridos, como o furto de cestas básicas durante uma das campanhas da instituição.
É nessa altura em que o telefone toca pela primeira vez. – Cida é tão procurada que somente durante a entrevista foram cinco chamadas telefônicas e duas no portão - Ela pede licença para atender. “Oi filho. Te liguei mais cedo sim para te falar, mas você não me atende nunca!”, exclama a mãe Cida. Com 14 filhos, 32 netos e um bisneto, a mulher carrega com sigo uma família inteira. Além de acolher e auxiliar pessoas na Mão Amiga, Cida levou para mais perto de si algumas crianças e fez delas suas quando o mundo lhe virava as costas. São sete os seus amores adotivos.
Com uma despedida calorosa e um convite para o almoço, a mãe se despede do filho. Ao retornar a cadeira, Cida se acomoda e suspira com um contido sorriso. A alegria de falar com um dos seus é claramente perceptível. Suas atenções se voltam novamente para os recortes e os olhos indicam que a história continua. “Depois de passar pela Vila Olavo Costa e Santa Rita conseguimos uma sede aqui no Ipiranga. O aluguel é todo pago por um juiz federal, nosso amigo.”
Na casa de modestos cômodos e um pequeno quintal, são prestadas assistências diversas à comunidade, como atendimentos com fonoaudiólogo, psicólogo, advogado e aulas de Inglês. Doações também são realizadas às famílias através do apadrinhamento por exemplo, no qual membros externos tornam-se padrinhos de crianças e doam mensalmente um valor em dinheiro que auxilia nas despesas mensais do apadrinhado. Outro tipo de doação é feito por meio do projeto Cegonha que já atendeu 40 gestantes que receberam enxovais doados por parceiros da instituição.
Mesmo com o comprometimento de arrecadações frequentes, o Mão Amiga precisa de muito apoio. Por ironia, a instituição que auxilia pessoas carentes é tão carente quanto, e é isso o que tira o sono de Dona Cida. “Existem pessoas que dependem da Mão Amiga para viver, mas ela também depende da ajuda de outras pessoas”, lamenta. Mas isso não faz Dona Cida pensar em desistir em um só momento. “Eu nunca fiz nada esperando retorno, sempre pensei em dar oportunidade para quem não tinha.” E conseguiu. Seu troféu são os jovens que passaram pelas suas mãos e conseguiram buscar seu lugar no mundo e ocupar os espaços que tantas vezes lhes foram negados.
Mesmo com os percalços encontrados em sua trajetória, Dona Cida mantém-se irredutível e mostra-se tão forte quanto o amor que sente pelos demais. A mulher é colo, afago e um ser humano condenado a habitar outras vidas. Cida é a completa ausência de fronteiras e de suas próprias dimensões por viver sem medo além de si mesma.
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